Dízimo nas igrejas: milhões arrecadados e livres de fiscalização
Dinheiro dos fiéis desviado, depositado em conta de pastores e até transportado em malas para outros países. As denúncias que pipocam todos os dias refletem o desmando e a falta de fiscalização pública com a arrecadação milionária das igrejas, que em 2009 foi de R$ 303 milhões no Estado, segundo a Receita Federal.
O dado refere-se a 897 igrejas que têm registro na Receita Federal no Espírito Santo. Mas a cifra pode ser ainda maior, uma vez que são as próprias igrejas que dizem ao fisco quanto arrecadaram. Não há notas ou recibos que comprovem a origem desses valores. Cálculos feitos só com base no número de evangélicos apontam que a arrecadação pode chegar a R$ 520 milhões por ano.
A necessidade de fiscalização parece mais relevante quando se leva em conta o fato de as igrejas contarem com imunidade tributária garantida pela Constituição Federal. Elas são isentas de pagar impostos a municípios, Estado e União. Algo que muitos , como o advogado tributarista Ricardo Dalla, defendem que precisa ser revisto. “As igrejas são tratadas com liberdade total. A elas é dada carta branca, sem uma fiscalização pública efetiva. Isso precisa mudar”, diz.
Imunidade
Dalla destaca que para ter imunidade tributária é preciso provar a prestação de um serviço público essencial. Mas explica que hoje não existe autoridade pública que faça a conferência dos serviços efetivamente prestados pelas igrejas.
As denominações religiosas são obrigadas a apresentar à Receita Federal uma declaração anual de informações de pessoas jurídicas (DIPJ), em que dizem o quanto arrecadaram no ano e como aplicaram os recursos. Eventualmente é feita uma outra declaração de créditos de tributos federais, quando precisam quitar algum tipo de débito.
Fora isso, suas receitas não passam por acompanhamento público. As irregularidades só são encontradas a partir de denúncias ou de indícios de fraude, sonegação ou enriquecimento ilícito. “Quando há algo que nossas análises indiquem”, diz Ivon Pontes Schayder, delegado-adjunto da Receita Federal.
O acompanhamento da arrecadação do dízimo, que vai desde a doação até a entrada no caixa – incluindo a aplicação do dinheiro –, acaba sendo feito pelas próprias igrejas. E cada uma adota suas regras.
Vulnerável
Esse é um processo que o Ministério Público Estadual aponta como vulnerável, pois as doações em geral são feitas em dinheiro, sem nota ou recibo, e passam pelas mãos de inúmeras pessoas. E em qualquer etapa podem ocorrer irregularidades. A Igreja Evangélica Batista de Vitória chegou a receber doações do advogado Beline Ramos, acusado de sonegação fiscal.
No último mês duas igrejas – a Cristã Maranata e a Assembleia de Deus – foram alvo de denúncias. Na primeira, mais de R$ 20 milhões podem ter sido desviados por meio de notas frias, empresas laranjas e envios de recursos para o exterior na mala dos fiéis. Um dos acusados é seu vice-presidente – agora afastado –, o pastor Antônio Ângelo Pereira dos Santos.
Sobre a Assembleia de Deus em Serra-Sede, a polícia confirmou que recursos de dízimos vêm sendo depositados, nos últimos seis anos, nas contas particulares de pastores, incluindo a do presidente da igreja, Délio Nascimento.
Uma alternativa para evitar esse tipo de problema poderia ser a adoção de métodos de gestão mais modernos, semelhantes ao da iniciativa privada. “A adoção de técnicas de controle é fundamental”, diz a pastora luterana Rosane Pletsch, presidente do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (Conic).
Rosane observa que as igrejas precisam estar na vanguarda nos processos de transparência e de controles públicos e sociais. “As igrejas fazem parte da sociedade. E esse tipo de fiscalização não fere o cristianismo, que sempre zelou pelo justo e correto.”
O problema é que as denominações religiosas no Brasil, assinala a pastora, ainda estão ancoradas em uma imagem de que o sagrado é bom, justo e, portanto, isento de qualquer tipo de acompanhamento. “As igrejas são pecadoras, têm estruturas humanas e falhas”, observa a pastora.
Ela vai ainda mais longe ao destacar que as igrejas só são instituições privadas no que diz respeito à fé, a seus ritos, à confessionalidade. “No mais, são instituições públicas”, acrescenta. O assunto será tema da próxima reunião do Conic, prevista para as próximas semanas.
Metodologia
No Estado mais de 1,1 milhão de pessoas – quase um terço da população – são evangélicas. Desse total, pelo menos 85% contribuem com o dízimo, segundo a última pesquisa realizada pela Revista Comunhão. Foi com base nesses dados que a Merccato Inteligência Competitiva fez os cálculos do quanto as igrejas evangélicas arrecadam por ano, um total que pode chegar a R$ 520 milhões.
O diretor da Merccato, Anselmo Hudson, explica que a dificuldade para se chegar a um valor exato do quanto é arrecadado está no comportamento dos fiéis. Nem todos frequentam a igreja com assiduidade, contribuem com o dízimo ou pagam exatamente os 10% previstos na Bíblia.
A maior parte da população capixaba é católica, chegando a quase 60%. E na Igreja a dificuldade de se obter o total da arrecadação também é grande. A Arquidiocese de Vitória não divulgou seus valores.
Associação de ateus quer fim da isenção tributária de igrejas
A imunidade tributária das igrejas virou tema de discussão nas redes sociais. No Facebook a campanha “Fim da imunidade tributária das igrejas. Eu apoio”, foi encampada pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos. Segundo seu fundador e presidente, Daniel Sottomaior, essa imunidade fere o Estado laico, que é neutro em relação às questões religiosas. “É um privilégio que faz com que um seja diferente do outro. Devemos ser todos iguais”, assinalou Daniel.
A associação reconhece que a proposta é praticamente impossível de se tornar um projeto de lei, visto que política e religião estão atreladas em um interesse comum. “Hoje uma eleição é decidida em propostas da base evangélica e católica”, disse Daniel.
Para a instituição a imunidade abre espaço para a prática de crimes, principalmente os fiscais, já que há uma ausência de fiscalização da arrecadação das igrejas. “É impossível controlar essas movimentações”, afirmou.
Uma outra proposta da associação é criar uma lei federal que exija uma prestação de contas de todas as entidades que se utilizam da imunidade religiosa. “Seria uma lei difícil de ser cumprida. Mas só dela alcançar 10% das maiores igrejas do país estaria de bom tamanho”, destacou.
Letícia Cardoso
Vilmara Fernandes
gazetaonline.globo.com
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