quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Números do aborto no ES: 3 mortes e 3 mil curetagens

Desde 2008, pelo menos três mulheres morrem, por ano, após provocarem um aborto no Estado. No mesmo período, mais de 3 mil curetagens (limpeza no útero após a retirada do feto) foram realizadas. Já no Brasil, 200 pacientes perdem a vida a cada ano, num total de quase 1 milhão de procedimentos clandestinos. Na última segunda-feira, a estudante capixaba Camila Ramos, 19 anos, entrou para essa estatística. Ela foi a terceira mulher a morrer neste ano, no Espírito Santo, por complicações pós-aborto.

Esses e outros números recheiam uma discussão antiga: o aborto de gravidez não-programada deve ser liberado no Brasil? Hoje, é permitida a abortagem somente em casos em que a mulher foi vítima de estupro ou correr risco de morte.

O assunto é polêmico, tanto que virou um dos principais temas em debate na atual campanha eleitoral - e que pode ajudar ou prejudicar um dos candidatos a presidente.

"O debate se limita ao que a legislação brasileira permite, hoje; mas, em grande parte das discussões, sempre há algum embasamento religioso. Mesmo assim, todos sabemos que não é comum alguém ser preso por ter feito aborto, pelo menos se comparado ao grande número de casos que acontecem no país", avalia o professor de Processo e de Direito Penal da FDV, Rafael Boldt.

Divergências
Nem dentro das mesmas instâncias se chega a um consenso. O Conselho Regional de Medicina (CRM), por exemplo, é contrário ao aborto; mas há teóricos da área de saúde pública que defendem a abortagem para melhorar o serviço de saúde, principalmente à mulher.

Apesar de a grande maioria de católicos e evangélicos serem contrários à retirada do feto, há grupos, dentro das religiões, favoráveis à mudança. A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), por exemplo, mostra que 88% das mulheres que fizeram aborto, entre 18 e 39 anos, têm religião. O estudo aponta, também, que uma de cada cinco mulheres com até 40 anos fez um aborto.

Procedimento é fácil para quem pode pagar
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Uma pesquisa rápida na internet e pronto: mais de 300 mil sites fazendo referência a compra de um medicamento com venda proibida em farmácias há anos. O misoprostol é um dos medicamentos usados por metade da mulheres que optam pelo aborto, como aponta o PNA, estudo da UnB feito este ano.

A opção por usar o medicamento pode ser explicada pelo preço: estudo da Unicamp aponta que o preço médio de quatro comprimidos, comprados no mercado ilegal, é de R$ 250. Quem tem dinheiro hoje para pagar por um aborto, em clínica médica, gasta média de R$ 950.

Esse foi o valor pago por Marcela (nome fictício). Ela tem 33 anos, é casada e tem um filho. Mas não quis ter o segundo, em 2009: optou pelo aborto. "Não estava no momento. Eu e meu marido escolhemos. Meu médico indicou uma clínica no Rio de Janeiro, e marquei tudo por telefone", conta a mulher.

Além dela, outras nove grávidas estavam na clínica, no dia, pelo mesmo motivo. "O espaço era escondido, como uma escada atrás de uma porta. No local, adolescentes com mães, mulheres com maridos e uma senhora de 43 anos, elas eram do Rio, de São Paulo, de Mato Grosso... Até os taxistas sabiam", relata Marcela, sem se arrepender da decisão e com o sonho de engravidar em 2011. "Agora é um bom momento", explica ela.

Polícia investiga onde jovem fez o aborto
Equipes da Divisão de Homicídio e de Proteção à Pessoa (DHPP) foram às ruas, nesta semana, atrás de depoimentos que comprovem que a jovem Camila Rangel, 19 anos, tenha morrido por causa das complicações de um aborto, feito pela jovem na semana passada. O objetivo é descobrir quem são os responsáveis pela morte dela.

A polícia soube do caso na última segunda-feira, dia em que Camila morreu, por meio de um telefonema anônimo. "A equipe que estava de plantão na DHPP recebeu a notícia e foi às ruas para saber o que tinha acontecido. As investigações continuam, e tudo indica que houve aborto clandestino e que isso foi o que causou a morte dela", diz o delegado André Luiz Cunha.

Segundo ele, a jovem fez o aborto na semana passada. Ela já tem um filho, mas escondeu a segunda gravidez da família. No último sábado, ela começou a sentir dores e foi internada. Na segunda-feira, ainda no Hospital das Clínicas, morreu, mesmo depois de retirar o útero. "Ouvimos alguns parentes e amigos de Camila, hoje (ontem) e devemos colher mais depoimentos nos próximos dias", diz o delegado. A polícia ainda mantém diligências nas ruas para tentar localizar a clínica clandestina onde a jovem teria feito o aborto. Acredita-se que o local em no bairro Feu Rosa, na Serra.

Opiniões divergem até mesmo entre religiões

No meio religioso, católicos e evangélicos são contra o aborto. Em alguns casos mais extremos, até mesmo nos casos em que a abortagem está permitida em lei. Mas até entre esses grupos grupos há divergência sobre o assunto.

Para as Católicas pelo Direito de Decidir, grupo presente no Brasil há 17 anos, não deveria ser proibido, muito menos considerado crime. "Uma gravidez indesejada pode acontecer, independentemente da classe social ou do acesso à informações sobre prevenção. É uma questão de consciência: cabe à mulher decidir se deve fazer ou não o aborto, e sem ser julgada se está certa ou errada. Eu, por exemplo, não gostaria que minha filha abortasse, por exemplo; mas isso caberia a ela", frisa Regina Soares, uma das coordenadoras do grupo.

Mas há divergências: "Alguns princípios são absolutos e inegociáveis. O aborto é um deles. É respaldado pela autoridade da palavra de Deus. O dom da vida foi dado por Ele, e é Ele quem tem o direito e o poder de tirá-la. Somos a favor da vida", defende o presidente da Associação dos Pastores Evangélicos da Grande Vitória, Enoque de Castro Pereira.

O aborto deve ou não ser legalizado?
A discussão do aborto deve ser feita sem passar pela Igreja. Nosso Estado é laico; a Igreja não deve interferir no que cabe ao poder público. Caso contrário, o Estado passa a ter liberdade para interferir na Igreja, também. O aborto tem que ser visto como um problema de saúde pública. Hoje, não existem propostas para uma política de saúde da mulher. A impressão que temos é que o país, com a discussão atual sobre o aborto, retrocedeu no debate. Os dados apontam um grande número de mulheres morrendo por causa do aborto clandestino, de mulheres sem suporte médico, de mulheres, principalmente jovens, correndo o risco de nunca mais engravidar, e de um auto custo aos cofres públicos de mulheres atendidas no SUS por complicações com um aborto ilegal. Não cabe nesse debate julgar se a decisão da mulher é correta ou não. O país, principalmente os governantes, precisam reconhecer que existe uma demanda urgente para a saúde pública.

Rita de Cássia Duarte Lima é professora da Ufes, PHD em Saúde Coletiva

No dia a dia da medicina, eu que atuei muitos anos em prontos-socorros, torna-se comum e quase que diário o atendimento de mulheres que sofreram algum aborto. São histórias tristes, na maioria dos casos, e que chocam. As mortes são raras, mas as complicações não. Apesar dessa realidade, sou contrário ao aborto, por questão social (vejo que falta uma educação sexual preventiva em áreas mais pobres, do país) e por questão religiosa; sem falar que é crime fazer um aborto caso a gestante não esteja com risco de morte ou se ela foi vítima de algum estupro. Já recusei fazer um aborto em uma mulher que era vítima de estupro, mesmo com a permissão judicial para que a abortagem fosse feita. Eu não conseguiria. Acredito que o grande número de curetagens feitas no país, hoje, provam que o assunto é de saúde pública, mas prefiro defender ações de prevenção à gravidez. Não dá para corrigir um erro, caso a gravidez seja indesejável, causando outro.

Adenilton Cruzeiro ginecologista e obstetra, diretor tesoureiro do CRM-ES


A GAZETA -Maurílio Mendonça

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