RIO - Um jovem desce as escadas de sua casa durante uma festa e se despe diante dos convidados. Em outro momento, um casal de meia-idade discute, com palavrões e muita tensão. No banheiro de uma boate, um homem agarra uma mulher e arranca uma calcinha com força. Cenas como essas, aliadas a fatores como a agilidade da trama, a nostalgia do remake, o figurino caprichado e o drama de tintas carregadas como nos folhetins dos velhos tempos, vêm fazendo de "O Astro" sucesso entre o público - que, mesmo diante de uma história contada com um pé no exagero, não perde um capítulo.
Claudino Mayer, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro "Quem matou - O romance policial na telenovela", diz que o remake revê o melodrama clássico.
- Há a volta do romantismo meloso e a nostalgia da novela dos anos 70. Mas não existe uma fórmula (para o sucesso). Esta é adequada para este momento - explica.
Por outro lado, o estudioso acredita que a faixa das 23h não deve emplacar:
- É muita coisa para o telespectador assistir, e ele tem algo a fazer no dia seguinte. A ideia do remake vai se firmar. Mas este horário acho muito difícil.
Mas, afinal, quais são os segredos de "O Astro"? Por que o público foi enfeitiçado? Elenco, autores e direção comentam os quesitos listados pela Revista da TV.
OUSADIA NO HORÁRIO
Logo no primeiro capítulo, Márcio Hayalla, personagem de Thiago Fragoso, tira a roupa diante de uma pequena multidão. Foi um cartão de visitas para o que viria a seguir: sexo quente, palavrões e um realismo pouco visto atualmente. O horário de exibição e a classificação indicativa fixada em 16 anos contribuem para esta liberdade cênica.
- A nossa versão foi bem mais ousada com relação ao nu. Na original, a censura da ditadura fez com que a cena fosse mais sugerida do que ilustrada. Acredito que hoje em dia o nu é mais inflamável do que outrora, mas certamente foi mais chocante em 1977 - avalia Thiago.
Diretor-geral da trama, Mauro Mendonça Filho aproveita a permissividade do horário para ir contra o politicamente correto. Cigarros e drinques, por exemplo, são permitidos na novela:
- Hoje, não existe uma ditadura, mas essa panfletagem do politicamente correto. Muda o prisma, mas as armadilhas podem ser as mesmas. Não acho que a dramaturgia esteja aí para dar exemplos.
Guilhermina Guinle, que protagoniza momentos picantes como Beatriz, enxerga tudo isso com tranquilidade.
- São coisas que fazem parte da vida real. As pessoas beijam, transam, ficam nuas em casa. Vejo como uma coisa natural - diz.
Alcides Nogueira reforça que o horário permite maior ousadia e mais liberdade ao escrever.
TRAMA ÁGIL
Quem perde um capítulo de "O Astro" sabe que fica por fora da história.
- É objetivo: o espectador não fica cansado daquela demora para as coisas acontecerem - opina Guilhermina.
Mas, para Claudino Mayer, o corte seco e o ritmo excessivamente dinâmico dos capítulos pode ser um fator negativo.
- Algumas cenas não ficam compreensíveis. E novela não pode ser uma leitura de fragmentos, que não cria identificação com o espectador - avalia.
Já Rodrigo Lombardi defende que o formato, por si só, não permite a famosa "barriga". Geraldo Carneiro explica o que acontece na prática:
- As novelas mudaram muito. Antes, cada capítulo tinha, no máximo, 20 cenas. Hoje, fazemos em média 45, num tempo de duração de 35 minutos.
'QUEM MATOU?'
Em 1978, o mistério em torno do assassino de Salomão Hayalla mobilizou o Brasil - e tornou o "Quem matou?" um artifício tradicional das telenovelas até hoje. Para revisitar o papel do poderoso empresário, um marco na TV, Daniel Filho aceitou voltar a atuar, depois de 20 anos afastado do ofício - e deu à segunda morte de Hayalla novo fôlego.
- Aceitei interpretar o Salomão por ser um papel de curta duração - conta.
Especialista em "Quem matou?", Claudino Mayer diz que a repercussão de hoje não se compara à de outros tempos:
- Há uma comoção, mas não como naquela época, quando a novela era exibida no horário nobre.
QUÍMICA DO CASAL
O entrosamento entre o casal protagonista em um folhetim é um dos fatores-chave para o público: se a química não convence, ele não ganha a torcida do telespectador. "O Astro" não padece desse mal. Todas as cenas de amor entre Herculano (Rodrigo Lombardi) e Amanda (Carolina Ferraz) despertam não só simpatia como também suspiros e uma leve invejinha em quem está em casa.
- Acredito que Amanda é uma exceção: ela consegue ser forte sem perder a humildade, e ser frágil sem se tornar vítima. Mas o grande diferencial é mesmo o amor correspondido e vivido pelo casal central. Eles se amam e estão juntos, ao contrário de outras histórias onde os protagonistas só se reúnem no último capítulo - avalia Carolina.
A atriz ainda aposta na identificação do público.
- As pessoas precisam se reconhecer na tela de algum modo! - empolga-se.
O TÍPICO NOVELÃO
Os brados de Clô, a choradeira incessante das mocinhas Amanda e Jôse (Fernanda Rodrigues) por seus amados e o conto de fadas de Lili, a moça pobre vivida por Alinne Moraes, são alguns exemplos das tintas carregadas de "O Astro".
- Acho que um bom melodrama é que nem uma boa música de Roberto Carlos: simples, fluente e arrebatador. Nossa novela é meio "Cavalgada" - compara o diretor-geral.
Para Thiago Fragoso, é um acerto unir o drama à modernidade.
- A trama é fiel ao novelão clássico, sem descartar a evolução de nossa teledramaturgia. É um trabalho que prima pela sutileza, mesmo com as cores fortes de um folhetim tradicional - avalia o ator.
No fim das contas, o exagero é garantia de diversão, conta Lombardi:
- É uma novela kitsch, com atores, direção e autores se divertindo.
Já Geraldo Carneiro acha que o folhetim tem a seu favor o fato de não estar "contaminado pelo cinismo, como tantos hoje, reféns de um pessimismo de final de século XX".
A NOSTALGIA DOS REMAKES
A onda nostálgica que vem arrebatando os telespectadores - e coleciona boas audiências como as registradas pelo Canal Viva ou pela última versão de "Ti-ti-ti", na Globo, por exemplo - também impulsionou a boa fase de "O Astro". Mas, embora elogiem em uníssono o texto de Janete Clair, autores e atores deixam claro que há adaptações consideráveis na novela de 1977.
- Tomamos todas as liberdades que imaginamos necessárias para a transposição de "O Astro" para o século XXI. Tomara que lá do improvável céu dos dramaturgos dona Janete nos abençoe - brinca Geraldo Carneiro.
Intérprete de Márcio, Thiago Fragoso, considera essas mudanças um trunfo.
- O grande diferencial é que não é um revival e, sim, uma releitura feita com muito cuidado e carinho - afirma.
Apesar de todas as necessárias alterações, o folhetim mantém características clássicas das "tramas de antigamente", como os diálogos mais elaborados e as cenas densas. Para Alcides Nogueira, a decisão de usar esses recursos tem a ver com a qualidade do elenco.
FIGURINO
Tendo como seu símbolo máximo o turbante cravado com a tal pedra ametista, o figurino segue a cartilha de todo o resto da novela: uma pegada ao mesmo tempo realista e kitsch.
- Tentei pontuar o visual das personagens com peças que contêm uma história. Queria que todos eles, não apenas o Herculano, tivessem essa coisa um tanto surrealista, mas com um pé na realidade. O desafio é não ser totalmente realista nem caricato - explica a figurinista Labibe Simão.
A caracterização de Amanda (Carolina Ferraz) e Clô (Regina Duarte) merece destaque:
- As duas têm algo em comum: são inesperadas. A Clô é aquele exagero. Você nunca sabe como ela vai aparecer - define Labibe.
CARÁTER DEFINIDO
Vilãs como Flora (Patrícia Pillar, em "A favorita") e Clara (Mariana Ximenes, em "Passione") não teriam vez em "O Astro". Aqui, os malvados não enganam ninguém. Neco (Humberto Martins) já tentou estuprar Lili (Alinne Moraes) e matar Márcio (Thiago Fragoso) com uma explosão. Já Samir manipula tudo e todos para ganhar mais poder. Seu intérprete, Marco Ricca, conta o segredo para dar vida ao clássico vilão:
- O texto é o grande material. Está tudo lá. Tento falar, olhar nos olhos dos colegas e não derrubar nenhum cenário (risos). Isso já é 70% do trabalho.
O estudioso Claudino Mayer elogia os núcleos "bem localizados":
- O lado do bem e o do mal, elementos muito presentes no gênero melodramático, são bem definidos. Lili é a mulher batalhadora, e Samir tem pegada de vilão.
O ANTI-HERÓI
Um protagonista que tem momentos bonzinhos e atitudes nem sempre tão nobres. O Herculano Quintanilha de Rodrigo Lombardi não é o grande mocinho da novela, mas conduz a trama e cria identificação com o espectador.
- É um prazer fazer um homem que tem tudo dentro de si, que deixa aflorar todas as facetas do ser humano. É muito mais gostoso fazer esse cara que não é um protagonista clássico. Não é um Romeu ou um herói shakespeariano. Mas é atual e autêntico. Ele erra, acerta, é ganancioso, vai em busca... E ama. São ingredientes que um herói da dramaturgia moderna tem que ter - opina Lombardi.
MÚSICA E REFERÊNCIAS
Desde a estreia de "O Astro", é difícil não cantarolar "Minha pedra é ametista...". A canção, na voz de João Bosco, é uma das músicas da versão original que foram mantidas. Diretor-geral da trama, Mauro Mendonça Filho ainda lança mão de outro recurso: referências cinematográficas. Filmes como "Watchmen" e "Assassinato em Gosford Park" já foram usados na novela. Ele ainda cita diretores como Brian de Palma e Quentin Tarantino:
- São inúmeras referências, uma verdadeira salada: vai de Pedro Almodóvar, passando por filmes de Hollywood dos anos 50. Mas a maior dela é a própria Janete Clair. A música também é um outro fator forte de atração.
Tatiana Contreiras e Thaís Britto - O Globo
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