Em entrevista, pesquisadora Monica Andersen fala sobre estudos feitos por ela desde 1995
SÃO PAULO - Disfunção erétil, obesidade, diabete, estresse e maior suscetibilidade para contrair doenças são alguns dos problemas que podem ser causados por distúrbios de sono. Na cidade de São Paulo, estima-se que um terço da população tenha algum problema para dormir adequadamente.
Estudar os efeitos da privação de sono tem sido, desde 1995, o foco da pesquisa de Monica Andersen, professora do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ela coordena um trabalho de investigação dos efeitos da privação e restrição de sono na função reprodutiva de ratos machos, que conta com o apoio da Fapesp.
Integrante do Centro de Estudos do Sono/Instituto do Sono, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela Fapesp, Monica apresentou os resultados de seu trabalho com animais na 25ª Reunião da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), realizada de 25 a 28 de agosto na cidade paulista de Águas de Lindoia.
Na ocasião, ela concedeu à Agência Fapesp a entrevista a seguir, na qual resume resultados do laboratório que coordena e de outras pesquisas voltadas aos problemas do sono.
Agência Fapesp - De quantas horas de sono precisamos?
Monica Andersen - Não há uma resposta única. A média são oito horas diárias, mas uma pessoa pode ficar bem com quatro horas, enquanto outra precisará de dez. Chamamos os extremos de “pequenos dormidores” e “grandes dormidores”. Agora, se me perguntar de quantas horas você precisa, temos que ver primeiro como você acorda.
AF - Pela manhã, quais são os sinais de uma noite bem dormida?
MA - Quem acorda abrindo a janela, de bom humor, dormiu a quantidade de que precisava. Quem acorda já cansado, com a sensação de que um caminhão passou por cima, ainda que tenha ficado na cama mais de nove horas, não teve um sono suficiente ou reparador.
AF - A quantidade de sono por noite pode ser modificada ao longo do tempo?
MA - Sim, essa mudança ocorre ao longo da vida. Ao nascer, costumamos dormir 16 horas por dia. No fim da vida, precisamos de poucas horas. O problema é que a sociedade está forçando essa redução, tentando se adaptar à falta de sono.
AF - Estamos dormindo menos do que as gerações anteriores?
MA - Nossa sociedade é cronicamente privada de sono. Há uma denominação nos Estados Unidos que é sintomática, da “sociedade 24 por 7”, isto é, que funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, que não para jamais. E isso traduz muito bem o que vivemos atualmente. Nós queremos a sociedade 24 por 7, principalmente nas grandes cidades. Participamos dessa autoprivação de sono. Queremos fazer mais um curso, terminar mais um trabalho e tudo o mais que conseguirmos encaixar em nosso dia, e quem paga por tudo isso é o sono. Por que simplesmente não vamos dormir e deixamos as tarefas para o dia seguinte? Isso é cada vez mais impensável.
AF - Que problemas essa privação pode causar?
MA - Um deles é o acúmulo de gordura em nosso corpo. A privação de sono aumenta o apetite por comidas calóricas, estimula o hormônio da fome (grelina) e reduz o hormônio da saciedade (leptina). Pouco sono também afeta o desempenho no trabalho ou estudo e provoca pequenos deslizes que afetam o nosso rendimento. Há algumas profissões em que deslizes são particularmente perigosos, como aquelas ligadas à segurança ou à saúde pública.
AF - Não é paradoxal que justamente as profissões que envolvem grande responsabilidade e não podem ter tais deslizes sejam justamente aquelas que têm jornadas extenuantes, como médicos, policiais, pilotos de avião ou caminhoneiros?
MA - De fato. Uma das consequências mais sérias da falta de sono atualmente é o aumento no número de acidentes. Em fevereiro de 2009, por exemplo, na cidade de Buffalo, nos Estados Unidos, a queda de um avião em uma área residencial matou 50 pessoas. A investigação concluiu que a causa mais provável do acidente foi a fadiga dos pilotos, e os registros da jornada de trabalho realmente mostraram que eles haviam trabalhado horas excessivas. Também nos Estados Unidos, houve outro caso em que um avião simplesmente passou do aeroporto de destino e isso só foi notado uma hora depois. A causa do erro foi que os dois pilotos haviam dormido. Na medicina, é a mesma coisa: há estudos mostrando que, no fim de um plantão, o número de erros médicos é bem maior.
AF - Essa situação tem piorado?
MA - Isso está piorando porque a nossa sociedade está piorando. Muitos jovens, por exemplo, costumam inverter o ciclo circadiano [período sobre o qual se baseia o ciclo biológico do corpo, influenciado pela luz solar]. Eles vão para uma balada da 1 às 6 horas da manhã de sexta para sábado. Na noite seguinte, há uma balada ainda maior, até as 7 ou 8 horas do domingo. Ao voltar para casa, tomam café e vão dormir, para acordar no meio da tarde. De noite, eles não conseguem dormir e, na segunda-feira, começam uma nova semana, às 6 da manhã, para ir à escola ou ao trabalho. Eles iniciam a semana já privados de sono.
AF - Que consequências essa rotina pode trazer?
MA - Tenho muita preocupação com os jovens de hoje. É uma faixa etária que terá dificuldade de aprendizagem, porque o sono é fundamental ao aprendizado e à memória. Muitos acabam dormindo na escola ou nas universidades, em plena sala de aula. Esse é um problema muito importante.
AF - É um problema que atinge outras faixas etárias?
MA - Infelizmente, sim. Acima dos 30 anos está a faixa que chega em casa pensando em relaxar, mas que resolve ligar o computador “só para checar os e-mails”. Só que acaba se envolvendo em outras atividades online e ficando bastante tempo conectado. Muitos trabalham o dia inteiro em frente a um computador e passam as madrugadas em frente a outro, em casa, jogando ou batendo papo. Tem também a televisão, que antigamente tinha poucos canais e uma programação que terminava na madrugada. Hoje, são dezenas de canais, que funcionam sem parar.
AF - Quais são os principais distúrbios de sono que essas rotinas causam?
MA - Temos visto muita insônia em mulheres. Em São Paulo, cerca de um terço delas tem problemas para dormir adequadamente. Mas os homens também sofrem. E 32,9% da cidade de São Paulo tem a síndrome da apneia do sono, que pode levar à sonolência excessiva diurna.
AF - O que caracteriza a apneia do sono?
MA - São paradas respiratórias durante o sono. Essas paradas podem ocorrer até 80 vezes por hora, ou mais de uma vez por minuto. Com isso, o coração tem de bater muito mais forte para levar o oxigênio ao cérebro. Imagine a pressão arterial dessa pessoa, uma vez que isso ocorre todas as noites. A apneia do sono é mais prevalente em homens e, entre seus principais fatores de risco, está a obesidade.
AF - A quantidade de sono também afeta a reprodução e o desempenho sexual?
MA - Essa é a minha principal linha de pesquisa. O que observamos até agora em ratos é que uma privação de sono pontual provoca uma excitação sexual nos machos. Isso ocorre na privação de sono REM [sigla em inglês para “movimentos oculares rápidos”], quando ocorrem os sonhos. No entanto, apesar de apresentarem desejo, pois os ratos chegam a montar na fêmea, eles não conseguem fazer a penetração. Em outras palavras, eles têm desejo, mas não a função erétil adequada.
AF - Isso pode ser extrapolado para os seres humanos?
MA - Em 2007, fizemos o Episono, um grande levantamento epidemiológico no qual foram analisados 1.042 voluntários, que refletiam uma amostra representativa da população da cidade de São Paulo. Foi nesse estudo que levantamos que cerca de um terço dos moradores da capital paulista sofre de apneia do sono. Não estamos falando de gente que acha que tem a doença, são pessoas que foram diagnosticadas em laboratório por médicos especialistas em sono. É um número enorme. Isso explica por que existem mais de 400 laboratórios de sono espalhados pelo Brasil e por que todos ficam lotados.
AF - O estudo encontrou problemas sexuais nas pessoas com a síndrome da apneia do sono?
MA - O questionário respondido durante o Episono revelou que 17% dos homens da cidade de São Paulo se queixaram de disfunção erétil. Na faixa etária entre 20 e 29 anos, 7% dos homens disseram ter o problema. Acima de 60 anos, a reclamação de disfunção erétil subiu para 60%. O levantamento mostrou que quem tinha menos sono REM apresentava maior probabilidade de queixas de disfunção erétil. E os homens que acordavam muito durante a noite eram os que mais reclamavam do problema.
AF - E quanto aos que dormiam bem?
MA - Normalmente, os homens com bom padrão de sono não apresentaram a queixa. Uma das conclusões é que quem dorme mal tem um risco três vezes maior de apresentar disfunção erétil. Uma das causas é que a privação de sono reduz a testosterona, o hormônio sexual masculino. Praticar atividades físicas regularmente também se mostrou um fator protetor contra a disfunção erétil. Ou seja, para ter uma vida sexual normal é fundamental ter boas noites de sono e praticar atividade física.
AF - Em mulheres, essa relação também é encontrada?
MA - Fizemos testes de privação de sono com ratas e observamos que, quando elas são privadas de sono REM em fases nas quais estão receptivas para o sexo, o desejo sexual aumenta muito. Por outro lado, quando a privação de sono REM foi imposta em fases nas quais a fêmea não estava disposta ao acasalamento, equivalentes à tensão pré-menstrual da mulher, a rejeição ao macho aumentou bastante. Registramos fêmeas agredindo os machos para evitar a relação. Mas não dá para extrapolar para as mulheres comportamentos como esse, porque, além do ciclo menstrual, a mulher também recebe influências de uma série de alterações psicológicas. Nessa linha, estou fazendo uma pesquisa com a ginecologista Helena Hachul, também da Unifesp, para averiguar se a privação de sono pode afetar a reprodução nas mulheres. Para isso, estamos investigando a relação entre qualidade de sono e gestação.
AF - A falta de sono pode acelerar o envelhecimento?
MA - Esse foi o resultado de uma pesquisa feita por Eve Van Cauter, da Universidade de Chicago, uma das maiores especialistas em sono no mundo. Ela mostrou que a privação de sono em uma idade jovem simula um quadro de envelhecimento precoce. Seria como se essas pessoas de repente tivessem 60 anos. Há indícios de que a falta de sono pode provocar estresse oxidativo, alterações cardiovasculares, maior risco a diabete e outros problemas que veríamos em uma pessoa mais velha. Conheço uma mulher jovem, de 23 anos, que dorme muito pouco e tem um colesterol altíssimo, por volta de 300. Essa foi inclusive parte de um trabalho meu, de 2004, que mostrou, em ratos, que a privação de sono provoca o aumento do colesterol ruim, o LDL.
AF - Qual é o papel do sono no sistema imunológico?
MA - Há exemplos muito interessantes em relação a isso. Vários idosos que tomam vacina contra gripe voltam ao médico doentes dizendo que ela “não pegou”. Isso pode estar relacionado ao fato de o sono deles não estar bem consolidado. Um trabalho de 2003, na Alemanha, acompanhou jovens que tomaram a vacina contra a hepatite e não dormiram na noite seguinte. Eles simplesmente não apresentaram anticorpos para a doença. Em uma segunda fase do mesmo estudo, outros jovens foram privados de sono antes de receber a vacina e também não formaram anticorpos.
Fonte: estadao.com.br
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