sábado, 10 de dezembro de 2011

Índios botocudos podem ser descendentes diretos dos habitantes de Lagoa Santa, os primeiros de que se tem registro no Brasil


Índios botocudos podem ser descendentes diretos dos habitantes de Lagoa Santa, os primeiros de que se tem registro no Brasil
Família de botocudos em viagem: fuga dos
portugueses. Foto: Biblioteca Nacional Digital
RIO - Selvagens, sanguinários e estranhos. Esses adjetivos, comumente aplicados aos botocudos, mostram como a história nunca foi muito generosa com estes índios, cujo nome vem dos discos (botoques) que usam para alongar o formato de lábios e orelhas. Vítimas de um genocídio que, em 300 anos, reduziu sua população a poucas dezenas de pessoas, eles podem ser descendentes diretos dos habitantes de Lagoa Santa (MG), os primeiros que se têm registro no Brasil. A suspeita remonta à dois séculos, mas só agora a ciência consegue juntar evidências do parentesco.

A prova mais recente será detalhada em um artigo da Revista de História da Biblioteca Nacional, nas bancas a partir da próxima quinta-feira. A pesquisa, do Instituto de Biociências (IB) da USP, comparou a morfologia do crânio de Luzia - o esqueleto mais antigo das Américas, com cerca de 11 mil anos - com o de diversos grupamentos indígenas, como marajoaras, tupis e construtores de sambaquis. Os botocudos têm mais semelhanças com a primeira brasileira.Índios podem ser herdeiros de Luzia

- São características dificilmente observáveis a olho nu - pondera Danilo Vicensotto, pesquisador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do IB-USP. - Quando transformamos as medidas cranianas em dados, parece mais claro. Se compararmos o busto da Luzia e a foto de um nativo americano atual, é possível perceber transformações no formato dos olhos e nas características faciais, por exemplo. Mas esta distinção no pacote biológico é menor quando Luzia é posta ao lado dos botocudos.


Vicensotto admite que é necessário colher mais provas - leia-se, estudar outros crânios e aguardar avanços na análise genética. Seu levantamento, porém, ao menos mantém acesa a possibilidade de que os índios de lábios largos, se não tão antigos quanto Luzia, ao menos podem ter sido seus herdeiros, até 8 mil anos atrás.

O debate sobre a origem dos botocudos começou no final do século XIX, quando um conjunto de técnicas, usadas para medir o corpo, sugeriram que essas tribos eram descendentes diretos dos homens de Lagoa Santa. Poucas décadas depois, no entanto, as conclusões desse estudo foram rechaçadas. A polêmica só voltou à baila nos últimos 15 anos, após o geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisar o DNA mitocondrial desse grupo. Ao constatar como o material genético dos sobreviventes desta população mudou com os séculos, ele aventou a possibilidade de que existem aspectos biológicos ligando-os aos pioneiros do Novo Mundo.

- Não existe um antagonismo entre a análise do DNA e a morfologia do crânio, que é estudada agora, são trabalhos complementares - julga. - Infelizmente o estado de conservação precário do sítio arqueológico não permite a coleta de DNA dos habitantes de Lagoa Santa. Ainda assim, não podemos descartar a possibilidade de que eles tenham interagido com os botocudos.

Hoje encaradas com curiosidade pela ciência, essas tribos não mereceram sossego dos portugueses desde que estes lançaram-se na exploração do interior brasileiro, entre os séculos XVII e XVIII, em busca de metais preciosos. Os botocudos eram vistos como obstáculo nesse desbravamento. Cartas régias conclamaram guerra a eles e apoiaram abertamente o seu massacre.

Até então concentradas no Brasil Central, entre o norte da Bahia e o sul mineiro, essas populações se viram obrigadas a ampliar seus limites para escapar do trabalho forçado. Tribos correram para Santa Catarina e outras, até então instaladas no Sudeste, foram vistas por padres franciscanos no Maranhão.

- Estas transformações, impostas pela colonização foram muito desfavoráveis aos índios - opina Jeanne Cordeiro, arqueóloga do Laboratório de Arqueologia Brasileira. - Os botocudos tornaram-se vulneráveis e perderam sua herança cultural. Não havia lendas e mitos de origem que os ligassem a esses novos espaços.
Botocudos
Quanto à capacidade de resistência dos botocudos, é necessário dizer que eles não eram uma presa comum como os demais índios, mas destemidos e indomados índios. Os registros de suas lutas os elevam ao grau do selvagem mais bravo de todos os que existiram em território brasileiro, a ponto de a história registrar que nunca foram derrotados, mas chacinados. Sustentaram quatro séculos de luta.
Esta falta de identidade reflete-se até hoje nas populações remanescentes, segundo Vicensotto. Nos dois povoados de botocudos ainda conhecidos, que reuniriam menos de 100 índios, os adultos lembram-se de apenas algumas palavras de seu idioma, recorrendo à língua portuguesa para se comunicarem com seus filhos.

Botocudos e tupis-guaranis têm idiomas de troncos linguísticos diferentes - e esta incompreensão é um dos motivos por trás da rivalidade histórica entre suas populações. O segundo grupo, no entanto, foi beneficiado por seu comportamento político, que permitiu alianças com o homem branco e um olhar mais benevolente, inclusive na literatura. Em "O guarani", obra que projetou o escritor romântico José Alencar, são os botocudos que atacam o personagem-título, herói do livro.

- Uma série de preconceitos foi atribuída a esta população até o meio do século passado - acusa Jeanne. - Os botocudos foram marginalizados por terem um compromisso com suas tradições e, assim, resistirem à colonização. Negros e brancos, nos últimos séculos, substituíram totalmente o povo nativo no Brasil. Trata-se de um fenômeno que jamais aconteceu, em época ou lugar algum.Colonizadores e tupis: aliados

Já os tupis, segundo a arqueóloga, aproximaram-se visando à vitória em suas próprias disputas. Em terras fluminenses, por exemplo, as tribos do Rio e Cabo Frio eram rivais. Cada uma, então, aliou-se a um colonizador - a primeira buscou apoio dos portugueses; a outra negociou com os franceses.

Nem mesmo a preguiça, outra característica sempre atribuída aos índios, encontra eco no estilo de vida dos botocudos. Segundo estudos desse grupo, os adultos trabalhavam cerca de 12 horas diárias, em atividades que iam da caça e agricultura à cerâmica. Aos 13 anos, quando passava por um rito em que ganhava o botoque, o jovem assumia a obrigação de tornar-se útil para a tribo, exercendo alguma atividade que contribuísse para a subsistência de todos.

Eram tribos grandes, que chegavam a 600 pessoas, de organização extremamente complexa e mais descentralizada do que os tupis - conta Jeanne. - Infelizmente para os portugueses, os botocudos não contavam com qualquer noção de metalurgia. Ainda assim, foram feitos escravos. O resultado é que, hoje, seus povoados não têm sequer 10% do tamanho de séculos atrás. [ O Globo]


200 anos da guerra contra os botocudos 

Dois eventos importantes da história brasileira ocorreram no dia 13 de maio. Um deles é pouco conhecido e não é motivo para comemoração

DOIS EVENTOS importantes da história brasileira ocorreram no dia 13 de maio. O mais famoso e justamente festejado ocorreu em 1888: a assinatura, pela princesa Isabel, da Lei Áurea, que extinguiu a escravidão no Brasil. O outro, bem menos conhecido, aconteceu 80 anos antes e também envolveu um príncipe, mas não é nenhuma causa para comemoração.

Em 13 de maio de 1808, exatamente há 200 anos, o príncipe regente dom João (bisavô da princesa Isabel) assinou uma carta régia mandando "fazer guerra aos índios botocudos". O que levou dom João, que fugira de um conflito europeu, a iniciar uma nova guerra quase imediatamente após chegar ao Brasil? Quem eram os botocudos, percebidos como ameaçadores ao ponto de motivarem uma guerra contra eles?

O nome "botocudo", derrogatório e ofensivo, foi dado pelos portugueses a diversos povos histórica e geneticamente heterogêneos do grupo linguístico macro-jê que habitavam o nordeste de Minas Gerais, o sul da Bahia e o norte do Espírito Santo. Em comum, tinham o hábito de usar discos de madeira no lábio inferior e nos lóbulos das orelhas para expandi-los de forma peculiar.

As rolhas dos barris de vinho português eram chamadas botoques -origem do cognome botocudos. Nômades e
caçadores-coletores, caracterizavam-se por extrema belicosidade.

Os botocudos não toleravam a presença dos lusos invasores e usavam táticas de guerrilha para atacar fazendas, matar colonos e aterrorizar todos os que se aproximassem de seus territórios. A carta régia os acusa de "praticar as mais horríveis e atrozes cenas da mais bárbara antropofagia, ora assassinando os portugueses e os índios mansos por meio de feridas, de que sorvem depois o sangue, ora dilacerando os corpos e comendo os seus tristes restos". Hoje, a maioria dos estudiosos acreditam que esse canibalismo pode nunca ter ocorrido. Por que a guerra contra eles? Pelo domínio do território que ocupavam.

Com a exaustão crescente dos depósitos auríferos em Minas Gerais, os portugueses se voltavam para a exploração da terra no interior do país. A chegada de dom João agudizou a situação: eram necessários víveres para alimentar a corte e estradas para transportá-los. Surgiram, assim, novos impulsos para a expansão das fronteiras da civilização.

As terras brutas do nordeste de Minas, então cobertas de mata atlântica verdejante, eram o alvo e o prêmio, mas elas também abrigavam os irredutíveis botocudos. De certa maneira, e com alguma liberdade de comparação, o nordeste de Minas era então o que a Amazônia é nos dias de hoje.

Obviamente, os portugueses venceram a guerra, usando pólvora e aço. Os índios que sobreviviam eram escravizados. Também foram usadas armas biológicas -roupas e cobertores impregnados de vírus de varíola eram deixados na floresta para uso e contaminação dos índios.

Como escreveu o barão Johann Jakob von Tschudi,naturalista suíço que visitou a região por volta de 1860: "Os portugueses adotaram os meios mais infames para atingir esse objetivo. [...] Nenhuma nação européia se rebaixou tanto para manchar seu nome e sua honra como Portugal". Mas ele adiciona: "Nos últimos tempos, apesar de já existir uma Constituição brasileira, que, infelizmente, tem sido implementada de forma muito precária, a guerra de destruição contra os índios na província de Minas Gerais ainda continua". Hoje, os botocudos não existem mais. Seus descendentes, os índios krenak, somam poucas centenas de indivíduos. Tampouco há florestas verdejantes no nordeste de Minas. Predomina o semi-árido e a região é uma das mais pobres do
Estado.

Ensina a sabedoria popular que quem ignora sua história está condenado a repetir os mesmos erros. A guerra contra os botocudos é um episódio importante da nossa história, com mensagens relevantes para a moderna sociedade brasileira.

Assim, no dia 13 de maio, ao celebrar a abolição da escravatura pela princesa Isabel, também devemos nos lembrar da carta régia de seu bisavô, o futuro dom João 6º, que perseguiu, escravizou e matou botocudos, levando à virtual extinção de um conjunto de bravos povos indígenas.

SÉRGIO DANILO PENA, 60, professor titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), e REGINA HORTA DUARTE , 44, professora do Departamento de História da UFMG, são professores residentes do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG no período
2008-2009.



Leia também: os botocudos indomáveis do Brasil.

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